O professor da PUC Minas, onde coordena o Núcleo de Estudos
Sociopolíticos (Nesp), Robson Sávio Reis Souza, é um dos colaboradores na
redação do texto base da Campanha da Fraternidade 2018, cujo tema é violência.
Doutor em Ciências Sociais e especialista em Segurança Pública, além de membro
associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o professor falou à Revista
Bote Fé, das Edições da CNBB, sobre o tema da violência. Para o autor do livro
“Quem comanda a segurança pública no Brasil: atores, crenças e coalizões que
dominam a política nacional de segurança pública”, da Editora
Letramento, a violência vem se tornando o fio condutor da forma como se
realiza a sociabilidade no Brasil. Acompanhe, abaixo, a íntegra da entrevista.
A ideia de que o povo
brasileiro é ordeiro e de que há uma sociabilidade pacífica é um mito
nacional?
A experiência do viver em paz fundamenta a autoimagem de um povo
que se concebe como pacífico, ordeiro e inimigo da violência. Contudo, essa
ideia não apaga as contradições. Ao mesmo tempo em que se ostenta a vida
pacífica, produz-se e promove-se a violência, tanto no espaço público como no
ambiente privado de casas e empresas; nas interações pessoais diretas ou
mediadas pela tecnologia. Constata-se que, até mesmo nas relações sociais
cotidianas, o equilíbrio necessário à existência pacífica tem aparecido frágil
e suscetível a abalos, inflamados frequentemente por razões banais.
Nesse movimento de transformação social, tem emergido uma
sociabilidade que vai se concretizando em ações cotidianas violentas. A
cordialidade parece ceder lugar à intolerância. O compartilhamento negociado de
espaços e recursos parece, então, correr o risco de ser substituído pela
imposição autoritária de pontos de vista e a subjugação do outro pelo uso da
força, seja ela simbólica ou, em certos casos, até mesmo física. Em razão de
fenômenos como esses, é possível suspeitar que a sociedade brasileira possa
estar consolidando modos de vida referenciados no uso da força e da violência.
A violência se torna o fio condutor da forma como se realiza a
sociabilidade, isto é, a forma como uma pessoa interage com as demais em um
certo grupo social. Por vezes, para combater a violência, escolhem-se condutas
violentas. A concepção punitiva da justiça feita pelas próprias mãos, o
incremento dos equipamentos de segurança pela população em busca de
autoproteção, a exigência do maior rigor nas leis e do aumento dos presídios
são exemplos de como o discurso contra a violência às vezes se converte em
práticas que podem vir a aumentar ainda mais a sociabilidade violenta. Isso
ocorre quando se pretender fazer o combate da violência pelo recurso a
instrumentos potencialmente geradores de mais violência.
A concepção punitiva da
justiça feita pelas próprias mãos, o incremento dos equipamentos de segurança
pela população, a exigência do maior rigor nas leis e do aumento dos presídios
são exemplos de como o discurso contra a violência às vezes se converte em
práticas que podem vir a aumentar ainda mais a sociabilidade violenta
No texto base da CF 2018 vocês
falam de uma violência multifacetada e epidêmica que faz parte da história do
país. Multifacetada e epidêmica? O que estas expressões dizem sobre a natureza
da violência em nosso país?
O Brasil é uma sociedade injusta, excludente e extremamente
desigual que exibe uma democracia sem cidadania. Injustiça, exclusão e
desigualdade são fatores que geram múltiplas formas de violência. A fome, o
desemprego, a falta de moradia, de políticas públicas de proteção e promoção de
direitos são tipos de violência que afetam a dignidade humana.
Apesar de ser a oitava maior economia mundial, é o décimo país
mais desigual do mundo, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano, de 2016,
elaborado pela Organização das Nações Unidas. Em relação à violência letal, por
exemplo, os números apontados pelo Mapa da Violência 2016, mostram que, no
Brasil, cinco pessoas são mortas por arma de fogo a cada hora. A cada único dia
são 123 pessoas assassinadas dessa forma.
Por ano, quase 60 mil brasileiros são assassinados. A maioria
pobres, negros, jovens e moradores da periferia. É uma violência seletiva. Não
atinge a todos. No Brasil, há locais mais seguros que a Europa e mais violentos
que a Síria. Talvez, por isso, a violência letal não apareça como um
escândalo que clama aos céus, para muitos segmentos da sociedade e dos
governos.
Essas cifras revelam que, no Brasil, ocorrem mais mortes por
arma de fogo do que nas chacinas e atentados que acontecem em todo o mundo.
Contam-se mais homicídios aqui do que em diversas das guerras recentes.
A violência se torna o fio condutor da
forma como se realiza a sociabilidade, isto é, a forma como uma pessoa interage
com as demais em um certo grupo social
Os episódios de violência
intensificaram-se e, ao que parece, tornaram-se comuns também em médios e
pequenos centros urbanos, deixando de ser um fenômeno típico das grandes
metrópoles. O que explica esta realidade?
Se antes a violência era um problema relativo às grandes
cidades, em tempos recentes, numerosos fatores fizeram com que a violência
chegasse também aos médios e pequenos municípios. Além disso, ela se disseminou
por todo o território nacional, de modo que – apesar das variações regional ou local
em sua intensidade – a violência é hoje um problema em todo o país. O
incremento da violência pelo interior do país é determinado por múltiplos
fatores, dificilmente redutíveis a uma causalidade única. Entretanto, não há
como ignorar a influência do contexto socioeconômico na geração da violência.
dados disponíveis permitem afirmar que o sistema de segurança
pública e de justiça criminal é ineficaz. Com o aumento da criminalidade a
partir da década de 1980 foi-se consolidando um contexto em que a impunidade, a
maior procura por drogas ilícitas e a maior disponibilidade de armas de fogo
formaram o ambiente no qual se deu o crescimento dos homicídios e de outros
crimes contra a pessoa e contra o patrimônio.
Ao invés de se rediscutirem o funcionamento e os objetivos do
aparato estatal de segurança e justiça criminal para lidarem com a prevenção e
o combate à violência urbana, assistiu-se ao incremento da indústria de armas
de fogo, a medidas paliativas oi pontuais na gestão da segurança pública e à
ascensão da indústria da segurança privada. É nesse contexto que se espraiou
para todo o país a criminalidade violenta.
Se antes a violência era um problema
relativo às grandes cidades, em tempos recentes, numerosos fatores fizeram com
que a violência chegasse também aos médios e pequenos municípios.
Numa mesma cidade, encontramos
oásis de paz e tranquilidade e territórios marcados por extrema violência. Que
fatores definem estes espaços de paz e de guerra?
Pelo menos três fatores são fundamentais para definir esses
espaços de paz e de guerra. O primeiro deles é a ação (ou omissão) do poder
público. Nos locais onde o Estado deveria estar mais presente, como nas
periferias das grandes cidades, observa-se uma quase ausência das políticas de
proteção, promoção e defesa de direitos deixando tais territórios e seus
moradores, muitas vezes, entregues a grupos armados e a toda a sorte de
violência e desordem social.
Por outro lado, em áreas nobres, a presença do poder público se
faz de múltiplas formas, garantindo direitos dos cidadãos e protegendo o
patrimônio das elites. O segundo ponto que demarca a ocorrência da paz ou da
guerra está relacionado ao poder do dinheiro. Quem pode pagar por segurança
privada tem uma série de privilégios dentro do espaço urbano negados à maioria
dos cidadãos que não possuem recursos financeiros. É dessa forma que a
segurança deixa de ser direito e torna-se privilégio.
Um terceiro ponto diz respeito ao tratamento seletivo dado pelos
órgãos públicos, dos três poderes, em relação à garantia de direitos, como o
acesso à Justiça. Quem tem condições de pagar “bons” advogados, por exemplo,
tem tratamento diferenciado. Nesse sentido, o viés étnico-racial e
socioeconômico é fator preponderante para proteção ou exposição à violência.
Também as interações sociais que acontecem no espaço público da
política e do aparato de Estado, por vezes, tornam-se violentas. Isso ocorre
quando, ao invés de se pautarem pela equidade e a observância universal das
leis consensualmente estabelecidas, as relações se pautam pela dissimetria de
poder. Determinadas pessoas tiram benefício privado a partir de recursos que
deveriam ser, por definição, públicos. Esse modo de funcionamento privatista
das instituições da sociedade torna-se um forte gerador de diversas formas de
violência.
“O modo de funcionamento privatista das
instituições da sociedade torna-se um forte gerador de diversas formas de
violência”
Como se manifesta a violência institucional no
Brasil?
Diferentemente das formas de violência direta, existem outras
que não se configuram como um fato ou evento remissíveis a um ou mais
agressores que causem um dano claramente definido a outra pessoa ou a outras
pessoas. Nesse caso, embora não se possa isolar e identificar claramente o
agressor, persiste a agressão ainda que perceptível somente de forma indireta.
Não se trata de um evento isolado, mas de um processo que acaba gerando dano a
um segmento social, mesmo que, eventualmente, não se possa discernir
explicitamente a intenção de produzir tal dano.
Apesar de ser mais difícil caracterizá-la, a violência no Brasil
está relacionada a modelos de organização e a práticas sociais que alcançam um
nível institucional e sistemático de produção e perpetuação de modos de vida
violentos. Não é, portanto, apenas nas interações cotidianas que a violência
transparece. Ela permeia também as instituições sociais. De fato,
historicamente, o próprio Estado brasileiro age, através dos séculos, de modo a
reiterar situações geradoras de violência, sobretudo no que tange à
desigualdade e à exclusão.
Exemplificando a correlação entre violência e contexto social,
econômico e político, vários estudos associam o aumento da violência letal – ou
seja, a violência que gera morte – ocorrido na década de 1980, com a crise
socioeconômica vivida naquele período. O processo inflacionário e a consequente
corrosão dos salários implicaram perda de rendimentos principalmente para os
mais pobres. Como resultado, aumentou expressivamente a desigualdade social.
Não se trata de uma relação linear de causa e efeito. O incremento
da violência é determinado por múltiplos fatores, dificilmente redutíveis a uma
causalidade única. Entretanto, não há como ignorar a influência do contexto
socioeconômico na geração da violência.
“A violência no Brasil está relacionada
a modelos de organização e a práticas sociais que alcançam um nível
institucional e sistemático”
Como a questão da violência vem sendo
enfrentada no âmbito das políticas públicas e práticas governamentais e da
legislação brasileiras? Há alguma luz no fim do túnel?
A sociabilidade violenta é uma construção. Faz-se de escolhas
políticas que a cada dia se renovam. Cada escolha ou decisão política em favor
da manutenção da atual (des)ordem das relações contribui para a perpetuação do
modelo. Em razão disso, parece coerente afirmar que o possível enfrentamento da
violência depende intrinsecamente das relações políticas.
Entendem-se, com o termo “política”, as negociações que se
estabelecem para que pessoas – com interesses tão numerosos e, por vezes,
antagônicos – possam dividir pacificamente um mesmo espaço. Nesse sentido,
pode-se dizer que não há solução para a violência fora das discussões que
ocorrem no âmbito da política. Por outro lado, esse raciocínio conduz a
reconhecer que cabe às decisões políticas uma parcela na responsabilidade pela
perpetuação de estruturas geradoras de violência no Brasil.
Existem hoje, no Congresso Nacional, parlamentares identificados
com segmentos econômicos e sociais fortemente interessados em propostas
potencialmente geradoras de violência. Defendem o uso de armas de fogo pela
população civil, sustentando tratar-se de um direito natural o da
autopreservação. Tramitam propostas de alteração do “Estatuto do desarmamento”,
não obstante o fato de este haver representado um importante passo na redução
do número de mortes por arma de fogo. Há várias propostas de recrudescimento da
legislação penal e de ampliação da ação discricionária das polícias, do
Ministério Público e do Judiciário.
No entanto, para além deste aspecto mais visivelmente ligado à
questão da segurança pública, existem inúmeras outras questões, estreitamente
ligadas a interesses econômicos, que são hoje debatidas no Legislativo, não
obstante o potencial motivador de mais violência de tais medidas. Destacam-se
as propostas que dificultam ou impedem a reforma agrária, a demarcação de
terras indígenas e outros povos tradicionais; as que restringem a legislação
ambiental; e as que facilitam a liberação do uso de agrotóxicos. Nessas e em
diversas outras medidas prevalece o interesse do ganho econômico para pequenos
grupos, em detrimento do benefício de toda a população.
Quando praticada de modo a transformar o acúmulo de riquezas num
fim em si mesmo ao invés de assegurar a dignidade das vidas humanas, a política
gera violência. Produzindo exclusão e desigualdade social, tal forma de se
fazer política faz da lei do mais forte a regra e pessoas tornam-se
descartáveis.
O Papa Francisco tem se colocado firmemente contra essa cultura
do descartável, “criada pelas potências que controlam as políticas econômicas e
financeiras do mundo globalizado”. Em um discurso para a Associação de
Movimentos Cooperativos Italianos, em fevereiro de 2015, ele ressaltou o
“crescimento vertiginoso do desemprego” e os problemas que os sistemas de
assistência social existentes tiveram para atender às necessidades da saúde
pública. Para aqueles que vivem “nas margens existenciais” o sistema atual
político e social “parece estar fatalmente destinado a sufocar a esperança e
aumentar os riscos e ameaças”, afirmou o Pontífice.
O Papa tem frequentemente criticado a economia de mercado
ortodoxa por estimular a injustiça e a desigualdade. Tem denunciado o fato de
as pessoas serem forçadas a trabalhar longas horas, às vezes na economia
paralela, em troca de um salário mensal ínfimo, porque elas são vistas como
facilmente substituíveis. Segundo Francisco, quando o dinheiro se torna um
ídolo, ele comanda as escolhas.
“Existem hoje, no Congresso Nacional,
parlamentares identificados com segmentos fortemente interessados em propostas
potencialmente geradoras de violência”
Há experiências de práticas sociais que
apontam para o caminho da superação da violência?
Na busca pela paz, muito frequentemente, há uma ênfase ao
combate à violência direta que, se eliminada, promoveria a paz. Disso resulta
uma concepção entendida por alguns estudiosos como uma paz negativa (que, per
si, pode inclusive ocultar injustiças que, muitas vezes, geram novos
conflitos). Destaca-se aqui, portanto, a importância do enfrentamento não
somente da violência direta, mas das violências estruturais e culturais, em
busca de uma paz positiva e sustentável.
Por certo, a paz não será alcançada pela mera obediência e
submissão a normas, pelo medo das sanções a determinados comportamentos
coletivamente rechaçados, ou pela segregação de pessoas e grupos. Há que
construir uma sociedade que, pautada na justiça, deseje a paz.
Assim, reconhecendo que a paz não se caracteriza apenas pela
ausência de conflito — condição inerente à vida humana em sociedade — a
concepção de “cultura de paz” está aqui entendida no sentido do “cultivo da
paz”, portanto, não como algo dado, mas resultado de ações e processos
multidimensionais, individuais e coletivos, claramente intencionados a produzir
modos de ser e de viver que tenham a paz como valor coletivo e horizonte a ser
alcançado. Em outras palavras, trata-se de construir estilos de vida voltados
para a promoção da paz.
O enfrentamento de diferentes formas de violência requer o
agenciamento de estratégias distintas, porém concertadas. E o entendimento de
que a paz é possível e desejada deve andar pari passu com a disseminação e
concretização de ações que resultem na abolição de todas as situações que a
impedem.
Assim sendo, a construção da paz submete-se a diversos
condicionantes, somente se podendo realizar na ação de muitos atores sociais —
individuais e coletivos—, via micro e macro práticas democráticas que promovam
o fortalecimento do Estado de Direito, a promoção dos direitos humanos, a
participação e o controle sociais.
Portanto, o desenvolvimento de uma cultura de paz implica a
ampla ação institucional, sobretudo no que tange ao Estado — e tem-se aí o
papel importantíssimo dos governos e o envolvimento das instituições jurídicas
— e, paralela e igualmente importante, a ação da sociedade civil, dos grupos e
dos indivíduos, de modo a que instaure uma radical mudança nas relações sociais
e políticas.
Em outras palavras, a construção de uma Cultura de Paz está
intimamente relacionada à promoção da democracia e ao fortalecimento das
instituições democráticas; ao desenvolvimento econômico e social sustentável,
com garantia da participação de todos; à erradicação da pobreza e das
desigualdades; à eliminação de toda forma de discriminação; ao respeito aos
direitos humanos e às liberdades fundamentais; à promoção da tolerância, da
diversidade e da solidariedade.